CONTOS DE TERREIRO

N. 3 - IDE E PREGAI 


Nos reunimos na roça com o dia ainda escuro. O sol vinha rompendo e a aurora despontava bela! A julgar pelos dias anteriores, nosso domingão seria bem quente, mas isso, seria apenas um detalhe que não nos afastaria de nosso objetivo: cumprir o “ide e pregai"! 

Dinda, como nós chamávamos Mameto Suelen de Dandalunda, despachou a porta, demos as mãos e cantamos para mPambo nZila para termos os caminhos abertos naquele dia. Em seguida, nos separou em equipes e atribuiu a cada uma, suas obrigações.

Mameto Ndenge Nice de nZumbarandá ficou com a liderança do grupo dos muzenzas. Já a Makota Cris de Kaiala ficou responsável pelo grupo dos maganzas e o kambondo Josias de Roximukumbe ficou responsável pelo grupo que incluía todos os koota maganza.

Nice de nZumbarandá iria com os muzenzas de casa em casa panfletar no Bairro Monte Oliveiras. Já Cris de Kaiala com os maganzas iriam realizar visitas no hospital CEMAS (Centro Especializado em Medicina e Assistência À Saúde), antigo hospital Bom Jesus de Nazaré, enquanto Josias de Roximukumbe iriam para a praça Bom Samaritano, no Largo Bom Pastor para fazer uma jamberessú, um candomblé. 

Dinda de Dandalunda, que estaria presente no candomblé que seria tocado na praça, antes de liberar as equipes, pediu que todos dessem as mãos e os advertiu:

- Meus filhos, estejam preparados: vocês sabem bem como somos recebidos nas nossas missões… eu não preciso dizer, pois confio em cada um! Sejam resilientes, pacientes e ajam com sabedoria. Lembre-se dos ensinamentos que receberam… gentileza gera gentileza e não há mal que não caia na presença do bem!

Dizendo isto, Dinda de Dandalunda abraçou a cada um de seus filhos e lhes deu mukuiu nZambi. Seu coração, como em todas as vezes, estava apertado, no entanto, era necessário cumprir o “ide e pregai"! 

  1. DE PORTA EM PORTA

Nice de nZambarandá e o grupo de muzenzas, num total seis pessoas, rumaram para o bairro Monte Oliveiras. Lá decidiram panfletar no dois residenciais abertos chamados “Ilha de cima” e “Ilha de baixo". 

Assim que chegaram no “Ilha de baixo” e bateram na primeira porta, lhes saiu em atendimento uma senhorinha muito simpática e sorridente. 

- Olá, querida! Bom dia! A senhora está bem?

- Bom dia! Estou bem, obrigado! 

- Mukuiu nZambi! A senhora aceita receber uma mensagem de nZambi?

- Muku-o-quê? Quem é Zambi?

- Mukuiu nZambi significa Deus te abençoe! nZambi é o Deus Supremo dos povos Bantos!

- Deus me livre! O sangue de Jesus tem poder! Eu sou comprada, lavada e remida no sangue do Altíssimo. Saiam agora da minha porta! Não maculem a entrada do meu santo lar, com a imundície profana da sua seita! Saiam! Saiam… agora!!! Saiam, já!

O grupo seguiu de porta-em-porta e como de costume, não obtiveram muito sucesso na panfletagem. Alguns moradores atendiam aos angoleiros com certa simpatia, porém era sabido que após eles virarem as costas, os panfletos eram atirados no lixo. 

Outros os atendiam com rispidez e com grosseria. O grupo desceu a rua Nossa Senhora da Penha, virando na Santa Terezinha para subir a Nossa Senhora Imaculada. No final desta, iniciava a parte do residencial chamada “Ilha de cima". 

A panfletagem seguiu a mesma rotina. Ao baterem palmas na frente de uma casa azul, tiveram uma recepção nada agradável. Na porta, saiu um senhor, aparentando uns 40 anos, em trajes menores e com cara de poucos amigos, que interpelou o grupo sem nenhuma cerimônia: 

- Ah! não… vocês não tem noção, né?! Pleno domingão… a essa hora!!!  Vá tomar no cú… porra! Vocês não tem o que fazer não! Não quero comprar nada… e se quiser ouvir as bobagens do pastor, eu vou pra igreja: vazam!! 


  1. ESTÁ ALGUÉM DOENTE?

O grupo chefiado por Cris de Kaiala chegou no hospital CEMAS (antigo hospital Bom Jesus de Nazaré), bem antes do início do período de visitas. Como era a primeira vez que o grupo angoleiro realizariam visitas aos pacientes naquele local, decidiram conversar com a direção do hospital antes. 

Com o responsável, a conversa não foi nada fácil. Ainda que Cris de Kaiala insistisse que o grupo apenas rezaria cantando para que Kaviungo auxiliasse na cura dos doentes, o representante do diretor do hospital naquele dia, resistia em consentir a visitação. 

Após muitas explicações e sob várias condições, a visitação foi permitida. O grupo se dirigiu para a primeira enfermaria. Cris de Kaiala se apresentava em nome do grupo e pedia ao doente se ele gostaria de receber a reza cantada, no entanto, ninguém aceitou. Já no corredor, a Makota estimula o grupo:

- Queridos, esta foi a primeira enfermaria… ainda tem duas e alguns apartamentos. Ânimo: alguém nos acolherá e receberá o axé que temos para dar!

No entanto, a expectativa de rezar nas enfermarias foi frustrada uma-a-uma. Por fim, o grupo começou a entrar nos apartamentos. Neles também não obtiveram sucesso, sendo hostilizados no penúltimo. 

A senhora que acompanhava a paciente, uma senhora de 85 anos, hospitalizada por uma infecção generalizada, lhes disse que eles deveriam abandonar a macumba e servir a Jesus Cristo, como único e verdadeiro senhor:

- “Ficarão de fora os cães, os mentirosos, os adúlteros e os feiticeiros", diz o Senhor dos Exércitos: arrependei-vos enquanto é tempo!

O grupo entrou no último apartamento. Foram recebidos com um largo sorriso, de um paciente de aproximadamente 40 anos, extremamente debilitado, com uma sonda no nariz, que não só aceitou nossas rezas, como também quis aprender a cantiga. E antes do grupo sair repetiu a saudação que aprendera:

- Tata Kaviungo mateba kukala kiuza! Mukuiu nZambi!!


  1. PROCLAMAI AS BOAS NOVAS

Conforme Dinda de Dandalunda havia instruído, próximo das dezesseis horas, nos reunimos na praça Bom Samaritano no Largo do Bom Pastor, para tocar o candomblé em louvor a Lembarenganga. Todos estavam bem animados e enquanto se preparam, Nice de nZambarandá e Cris de Kaiala relataram suas atividades para a Mameto Dinda de Dandalunda. 

Trinta minutos depois, estávamos todos reunidos e os ngombas já podiam ser ouvidos. Alguns muzenzas se aproximaram dos atabaques, onde Léo de Katendê rufava o seu rumpi, que foi acompanhado pelas palmas e cantos deles. Momentos depois, Mameto Dinda iniciou o candomblé. 

Tudo estava muito lindo. Algumas pessoas se aproximaram, sentaram e nos prestigiaram acompanhando os ngombas com palmas ritmadas. Terminado o toque de mPambo nZila, Mameto Dinda fez um pequeno intervalo e logo em seguida, retomou a roda. 

Ainda estávamos na terceira cantiga, quando uma viatura da polícia chegou. O policial desceu, interrompeu o toque e perguntou quem era o responsável por “aquilo". Mameto Dinda se apresentou e o policial lhe informou que a central havia recebido uma denúncia de perturbação da ordem. 

Mameto Dinda pediu ao muzenza de nSumbu que fosse até o carro. Momentos depois, Mameto Dinda exibia para o policial a autorização para a realização daquele candomblé e argumentou:

- Isso tudo é porquê é um candomblé! Não é, seu policial?! Se fosse um culto… se nós estivéssemos com caixas de som, microfones, com louvores, falando em línguas, isso não estaria acontecendo!!

- Sinto muito, senhora! Recebemos a denúncia e viemos averiguar… só estamos fazendo nosso trabalho!

- Pois já que estamos aqui legalmente, que se rufem os ngombas: vamos terminar nossa jamberessú! Pembelè Lemba!

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