O HINO OFICIAL DA JURISLÂNDIA
Um conto de Cao Benassi
(* Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência)
No reino distante de Jurislândia, também conhecido como República da Banânia, que ficava encravado entre as verdejantes planícies da Burocracia e as imponentes montanhas da Legislação, vivia um ser muito peculiar conhecido como Xandão, O Magnífico. As boas línguas da Jurislândia, deram a ele as alcunhas de Juizinho Mandão, A Lei Xandre de Imoraes, e ainda, O ovo que tudo vê.
Não, não se podia dizer que Xandão, O Magnifíco, era um rei, tampouco um imperador, mas, sim, ele era um juiz. Um juiz, cujo martelo ecoava mais alto que os trovões nos picos mais altos, nos mais distantes rincões. Sua fama de "mandão" não era apenas uma lenda, era a fundação sobre a qual Jurislândia parecia repousar.
Xandão, O Magnífico, tinha um olhar penetrante, capaz, diziam as boas línguas que repetiam coisas, pelos corredores do Palácio da Justiça, que ficava encravado no centro da Banârnia, a capital da Banânia, que juro a minha mãe vivinha, não passava fake news. Segundo elas, era de congelar até a mais fervorosa das manifestações. Sua mesa, sempre impecável, ostentava pilhas de processos que pareciam crescer por obra de magia, e ele os despachava com a velocidade de um raio, a maioria sigilosos e alguns instaurados de ofício.
Certo dia, um grupo de jovens bardos ousou compor uma canção satírica sobre as (in)corretíssimas e inquestionáveis decisões de Xandão, O Magnífico, espalhando-a feito rastilho de pólvora pelas tavernas e praças. A melodia era pegajosa, tipo musiqueta de quinta da Anita, e a letra, afiada como uma adaga, que juro: parecia ter vida própria. Eu não sou e nem gosto de fofocas, mas me disseram que em questão de horas, a canção chegou aos ouvidos do juiz.
A coisa ficou tensa. Um ensurdecedor silêncio tomou conta do Palácio da Justiça, que até parecia ali, uma vivalma não existir. Xandão, O Magnífico, com um leve sorriso, daqueles de canto de boca de quem trama o mau... perdão, o “bem”, sorriso o qual poucos podiam realmente entender, convocou seus fiéis escrivães. "Tragam-me esses bardos", proferiu, sua voz carregada de uma autoridade inquestionável. "Encontre um crime para eles, usem suas criatividades: eles precisam entender o verdadeiro ritmo da justiça."
Os bardos, coitados, trêmulos e sem mostrar resistência, foram apresentados diante do Juizinho Mandão. Esperavam uma repreensão severa, talvez até mesmo o exílio. Mas A Lei Xandre de Imoraes, para surpresa de todos, fez um gesto para que se calassem. "A música de vocês é interessante. Mas lhes falta harmonia."
Ele então pegou um pergaminho e mergulhou uma pena numa tinteira de prata de lei, e começou a rabiscar notas musicais e a reescrever a letra. "A partir de agora", declarou, "a canção oficial da Banânia será esta. E vocês, seus criadores, serão os primeiros a executá-la, e terão que tocá-la diariamente, na praça principal." Pensam que isso foi tudo? O Ovo que tudo vê ainda decretou: “cantarão em pleno sol, sem direito a água, tendo para molhar a boca, apenas limões”.
Os bardos se entreolharam, confusos, pois a nova canção era uma ode à ordem, à lei e, claro, às decisões inquestionáveis do próprio Xandão, O Magnífico. Era uma ironia de fina escritura, quase imperceptível para a maioria, mas dolorosa para os artistas que sonhavam com a liberdade de expressão.
A notícia da nova canção se espalhou feito um rastilho de pólvora. Alguns cidadãos, desses que ignoram a realidade para não se indispor com o sistema ou por falta de compreensão da realidade, riram, outros se encolheram. A praça principal de Jurislândia, chamada de “Praça dos Democratas”, se transformou em um palco onde os bardos, que com expressões resignadas, cantavam-na em louvor ao Juizinho Mandão.
Aos poucos, a população foi se acostumando com a melodia. As crianças cantarolavam-na enquanto brincavam. A influência vinha da escola, pois ali, todas, todos os dias, tinham que ficar em fila indiana e cantá-la para assim, poder adentrar o recinto dos saberes, no qual uma foto do Ovo que tudo vê era exibida e os seus feitos rememorados com honra civil. Os comerciantes assobiavam-na enquanto vendiam seus produtos. Menestréis a utilizavam para angariar suas merrecas, desde que pagassem o pesado quinto dos infernos. A canção, antes uma forma de protesto, havia sido cooptada e transformada em um hino da ordem.
Xandão, O Magnífico, em seu suntuoso gabinete, fazendo jus ao epíteto “O ovo que tudo vê”, pois observava o movimento da cidade por detrás da janela. Sua lustrosa cabeça era pista na qual deslizava a realidade e um novo sorriso enigmático brincava em seus lábios. Ele sabia que a verdadeira autoridade não residia apenas em impor, mas em transformar, até mesmo a rebeldia, em conformidade.
Os bardos, pobres artistas, com o tempo, aprenderam a arte da adaptação. Descobriram que, ao cantar a canção de Xandão, O Magnífico, podiam inserir pequenas e sutis nuances, pausas quase imperceptíveis, ou ainda, entonações sutis que, apenas para os ouvidos mais atentos e conscientes, revelavam um resquício da antiga sátira.
E assim, Xandão, O Magnífico, continuou a governar com sua peculiar mistura de autoridade e astúcia. O reino da Jurislândia, por sua vez, permaneceu um reino onde a lei era “flexível” o “suficiente” para abraçar a ordem, segundo definia o Juizinho Mandão, ainda que isso significasse transformar canções rebeldes em hinos oficiais.
A história de Xandão, O Magnífico, apesar contada em sussurros e risadas, serviu como um aviso constante: em Jurislândia, o Juizinho Mandão era quem ditava não apenas as leis, mas também as batidas do coração da cidade, o ritmo da sua respiração e os pensamentos pensados pelos jurislandenses, transformando a dissonância em sua própria sinfonia.
E os bardos? Ah, pobres artistas, de tanto repetir o tal hino oficial, ao sol e chupar limões, tiveram a voz suavizada e, com isso, aprenderam que a arte da subversão muitas vezes reside não em gritar, mas em sussurrar, encontrando a liberdade nas entrelinhas de uma melodia imposta.
A lição da Banânia impunha era clara: um Juiz Mandão não era apenas aquele que criava, ditava e impunha ordens, mas aquele que, com um toque de gênio e uma pitada de ousadia, era capaz de reescrever a própria melodia da vida em seu reino.
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