CASINHA DE PAPEIZINHOS; TETO DE PAPELÃO
Um conto de Cao Benassi
Na Banânia, era comum que as reuniões e demais convescotes do Palácio da Justiça e outras “casas do povo”, fossem regadas a vinhos, queijos e lagostas importados, que somados aos altos salários e penduricalhos, de toda a sorte, da politicama e dos juízes e seus asseclas, fazerem com que, pelas ruas irregulares e esburacadas das cidades bananienses, o povelo vivesse se abaixando, arrastando seus passos pelo peso “imposto” do sofrer.
Descia o trabalhador deixando acima a mulher grávida; abaixo ficava a cidade, e o pobre como qualquer outro desvalido da Banânia, se perdia em seu emaranhado de ruas que para os moradores da casinha de papeizinhos de teto de papelão, o hoje fosse o mesmo que o ontem, vivendo uma vida num mundo sem amanhã.
A chuva caía impiedosa sobre a imponente capital da Banânia. Dada a dita e dura da toga, impetrada pelo seu mais infame representante, o Juizinho Mandão, o paraíso na terra, belo por natureza, abençoado pelos deuses e cagado pelos políticos, agora era conhecido pela alcunha de “Jurislândia".
Na Avenida Esperantina, embaixo do Viaduto da Consolação, uma pequena estrutura de papelão ameaçava ruir sob a água que parecia jorrar dos céus a cântaros, num tenebroso balé coreografado ao sabor de uma terrível sinfonia eólica, que ia transformando o chão batido da “casinha” em um mar de lama. Dentro da tal "casinha", Dona Mara, a triste Maroca, sentia o frio úmido penetrar seus ossos.
Seus filhos, que normalmente, em dias de chuva e na ausência da mãe, ignoravam a lama formada com a água que o teto de papelão da “casinha” não continha, imaginavam ser um grande mar de águas barrentas, fazendo de um pedaço avulso de papelão um navio que, nos seus “papeizinhos”, os levavam para um lugar no qual eles eram iguais e nunca faltava o pão.
Ali, os filhos não tão iguais da triste Maroca, alheios à intensidade da tempestade, dormiam amontoados em um canto, buscando calor uns nos outros. De braços estendidos sobre seus filhotes, braços esses que sustentavam uma “seca poço” que achara no lixo, ela, feito um esteio de uma barraca, tentava com a cobertinha fubenta e seu próprio corpo impedir que a água, que teimava em cair sobre a Banârnia, molhasse seus desiguais rebentos.
Sua filha mais velha, Lívia, de doze anos, menina de olhos sonhadores e mente ávida, apesar das circunstâncias, alimentava uma fome insaciável por conhecimento, buscando insistentemente, nas lixeiras que às vezes revirava com a mãe, livros que os devorava em questão de horas, sonhando em estudar, e um dia então, escapar daquela realidade cruel.
Douglas, o filho do meio, de dez anos, era a personificação da revolta. Como qualquer outra criança banarniense, com exceção das nascidas com a buzanfa para a lua, umas mais outras menos, eram cor de terra, milionárias de lombrigas e tinham as mesmas cicatrizes. O menino nutria uma raiva silenciosa que borbulhava dentro dele, mais que o empretecido caldeirão, no qual Dona Maroca cozia com restos do lixo, o caldo que meiava seus estômagos, resultado da vida dura que levavam.
A caçula, Bethane, carinhosamente chamada de Ane e de Aninha, tinha apenas três anos. Inocentemente, dormia tranquila, aninhada perto de Lívia, que a protegia com um carinho que transcendia sua pouca idade. Lívia, mesmo às vezes sentindo que sua infância tinha sido perdida entre o cuidado dos irmãos mais novos e as latas de lixo que revirava com a mãe à caça de recicláveis e até de comida.
Todas as manhãs, antes do sol nascer, Mara saía para catar recicláveis. Era uma busca diária por dignidade, por um pouco de dinheiro que pudesse se transformar em alimento. Lívia, com a responsabilidade de uma adulta, ficava em casa cuidando de seus irmãos mais novos. Em dias de pouca sorte, quando os recicláveis não rendiam o suficiente, Mara revirava o lixo em busca de algo que pudesse aliviar a fome dos seus filhos. Não era fácil, mas o amor pelos seus pequenos a impulsionava.
Passada a temporada de chuva, o calorão se apossou do pranalto central sem tréguas. Certo dia, Maroca e Lívia caminhavam pelas movimentadas ruas da Banârnia, empurrando o carrinho de recicláveis. Pararam em frente a uma padaria, atraídas pelo cheiro de pão fresco e pelo noticiário que passava na televisão, que podia ser vista da calçada. A notícia falava da comitiva presidencial que, junto com deputados, senadores e ministros da suprema corte, iria ao funeral do Papa.
Lívia, de onde estava na calçada e com os olhos fixos na tela, virou-se para a mãe e, apontando para a televisão, questionou: "mãe, o que significa tudo isso?" Maroca, com um suspiro cansado, mas com a voz cheia de esperança, respondeu: "minha filha, isso significa, que há harmonia entre os poderes do nosso país. Significa que eles estão unidos por um propósito maior."
Lívia, com a perspicácia de uma criança que vive a realidade nua e crua, um tanto quanto comum às crianças bananienses, arrematou, com voz embargada e em tom melancólico: "mamãe, eu queria é que tivesse harmonia entre muitos ingredientes nas panelas lá de casa."
Maroca não respondeu, apenas abraçou a filha com força. As palavras de Lívia ecoaram em seu coração, como um lembrete doloroso da sua própria luta diária.
A harmonia entre os poderes, regados a vinhos, queijos, lagostas e viagens caras, algo tão grandioso e distante, contrastava violentamente com a desarmonia da panela vazia em sua casinha de papeizinhos e teto de papelão.
Querer harmonia entre diversos ingredientes em sua panela, era um desejo simples de sua mais velha, mas que parecia um sonho inalcançável para uma mãe que não suportava a dor de ver faltar o pão de seus filhos.
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