OS CAUSO DA FAMIA SILVA

 A doença do Tunico; a eguinha fujona; a viagem e o saco de tabaco


Um conto de Cao Benassi 


Olá! Estou aqui para contar uma história para você! Uma história feita de muitas histórias. Você deve estar pensando que caiu numa enrascada, né?! Só que não! Não serão tantas histórias assim, apenas alguns "causos". É por isso, que eu vou chamar essa história de "Os causo da famia Silva". Trata-se de alguns acontecimentos curiosos que selecionei aqui na minha cumeeira para contar sobre esse agrupamento estranho de sabináceos, que podem também ser chamados de humanos, que atendem pelo sobrenome de Silva.

Você deve estar achando que a estranha dessa história sou eu, isso porquê você ainda não sabe nada sobre os tais Silva, espere e verás. Bem, você deve ter estranhado eu dizer que selecionei-acontecimentos-curiosos-em-minha-cumeeira, e deve estar pensando que não bato bem da cachola. Mas peraí… eu não bateria bem se eu tivesse uma cachola!  Isso mesmo! Eu não tenho cachola… eu tenho cumeeira, janelas, portas, paredes, teto e piso, de chão-batido-é-claro. Sim, eu sou a moradeira, que eles insistem em chamar de casa, que é morada pelos Silva. Muito prazer! 

Eu fico na planície que se estende depois do ribeirão, onde os Silva, todos os dias vão se lavar… mania estranha que esses seres têm, de ficar se-enfiando-água-dentro, não bastando terem corpos horrorosos, viverem dum-lado-pro-outro e emitirem tantos sons estranhíssimos. Eu sou bem pequena e ouvi uns outros humanos, ainda mais estranhos que esses, fazerem dizedor de canto de falador, que eu-sou-de-pau-a-pique, seja lá o que isso queira dizer. Bem, é verdade que as madeiras que fazem as minhas paredes, não tem lá bom acabamento e têm um monte de frestas entre elas, nem meu piso é tão plano como deveria ser.

Tenho o que eles chamam de três cômodos, um grande que é a cozinha e também a sala de jantar (aprendi isso com eles). O outro do lado, é dividido em dois, é disseram que são os quartos. Ali, é onde eles ficam quando a manto luminoso é recolhido e no céu é estendido o véu escuro. Coisas estranhas acontecem na parte onde ficam os mais dois humanos velhos, basicamente, um macho e uma fêmea de insignificante aparência. Testemunho tudo desde o começo. Já faz tempo que acompanho os acontecimentos deles. 

Aprendi que eles procriam. A fêmea Bastiana, não sei como ainda, começa a aumentar de tamanho e como num ritual muito estranho, com choros, gritos e gotejamento, ela se divide num pedaço menor que com o tempo, vai crescendo, crescendo… crescendo! Vai ficando desajeitado igual aos mais velhos. Além do macho velho, que é o Jaum, a fêmea feia que é chamada de Bastiana, tem uma fêmea maior, que eles chamam de Tonha e uma menor, que é a Josefa, que também atende por Zefa e por Zefinha. Além desses Silva, tem um macho pequeno chamado Tonico e uma fêmea velha, que eles chamam de Donana.


A doença do Tonico

Um dia Tonico amareleceu todo! Os Silva ficaram todos preocupados porquê o humano serelepe, de repente amofinou e amoquecou-se num canto. A fêmea mais velha resmungou que era um tal de quebranto ou espinhela caída. A Donana, que era chamada também de mãe pelo tal Jaum, disse que tinha que levar para a rezadeira, porquê a de casa, não ia dar conta, sei lá o que isso era. Sei que depois de alguns dias, o macho velho mandou arrumar o macho novo, o Tunico, e depois de montar no galopador de quatro patas, desapareceu pelo caminho que seguia na beirada do ribeirão. No dia seguinte, o macho Jaum voltou com o tal Tunico. A fêmea mãe foi logo se informar:

(Bastiana) Antaum, homi… cuma foi lá nu boticaru?

(Jaum) É muié… Tunico tá-cu-nemia… tarra percisanu dissu desse vridu aqui i dessinjeçaum! Tá iscrivinhadu aqui. 

Quando começou a escurecer, antes do que eles chamavam o di-comê, o velho Jaum disse que tava na hora e que era para pegar "u papilin":

(Jaum) Muié… pega a roupa-de-vê-deus, poin-nu-Tunicu… Main, main… Do-na-naaaaaaaaaaaaaa… vem aqui muié!

(Bastiana) Ué homi, agora-u-qui-é-essi? Nein é dumingu i hoje naum tein reza?!

(Jaum) Maiziaqui tá dizenu: ajeita-u-Tunicu, injeçaum na véia!

(Bastiana) Ô homi sambanga… cuma injeçaum na véia, si quein-tá-duenti é o Tunicu?! Tonha… cuma-cá-muleca! Lê-u-inscrivinhadu-du-boticaru aqui, qui seu pai naum tá sabenu!

(Tonha) Main… é "agite u tônicu e a injeçaum faz na veia"!

É amiguinho, quase que quem leva a agulhada, foi a fêmea mais velha… quase que a Donana entrou numa fria. Pelo amor das lascas das minhas paredes! Aposto que agora você já deve estar começando a entender o porquê eu disse que esse agrupamento de humanos é muito estranho. Às vezes, eu nem me esforço para tentar entendê-los… apenas rio dos seus "causos", que para uns podem parecer meio sem pé ou sem cabeça, mas para mim, que já estou acostumada, cada acontecimento é só mais uma trivialidade na vida dos Silva.    


A eguinha fujona

O macho velho, o tal seu Jaum, não era muito popular. Mesmo assim, de vez em quando, apareciam outros da mesma espécie, que vinham "visitar" os Silva. Um tal Belarmino, de tempos em tempos aparecia na minha porta, batia as mãos e não demorava, a fêmea Bastiana aparecia e o mandava entrar. O tal Belarmino, a pretexto de procurar sua eguinha que sumira, ficava a fiar um conversê que só se acabava quando o "cumê", como eles diziam, estava em cima da quatro patas, chamada mesa, e a fêmea Bastiana gritava da janela: "murçáááááááááááá!". 

Depois, como ele dizia, barriga cheia, Belarmino-pé-na-areia! As visitas do Belarmino se tornaram cada vez mais frequentes, e isso preocupou o Seu Jaum. Na durmideira, a rede como eles chamavam, enquanto o "sono" não chegava, o macho velho conversava com sua fêmea esquisita:

(Jaum) Muié… tô incafifadu aqui…

(Bastiana) U-qui-já-foi-homi?!

(Jaum) Já-suntô qui a eguinha do Belarminu, só somi na hora du dicumê?!

(Bastiana) Ara homi… dexa-di-bestêra!

(Jaum) Sei naum… isquisitu-issu! Isquentucanecu deli naum?!

Certo dia, bem na hora em que Donana despejou o arroz na banha quente, o Belarmino que chegava perguntou: "Ocê viu mi'a eguinha?" Sagaz, o macho velho, o tal pai ou Jaum como era chamado, retrucou de pronto:

(Jaum) Vi.. ô si vi! Sua eguinha, Belarmino… relinchô-nu-meu-fugaum!

Galhofeiro, o macho velho não perdia uma oportunidade de zoar aos outros. Nem mesmo a fêmea mais velha, que era a que ele mesmo chamava de "main", ele perdoava. Os três sabináceos menores, a tal Tonha, a Zefinha e o Tunico então, vivam sendo azuretados pelo "pai" o tempo todo. Quando findava o dia, principalmente em noite de lua clara, diziam eles, para mim, era quando o véu era mais claro, pois bem, o macho velho se punha a contar as histórias de lobisomem e do mané-puff para o medo dos pequenos. Mas isso são pontos para um outro conto.   


A viagem

A fêmea Bastiana, há muito tempo, pelo que ela mesmo falaceava, não via os humanos dela, a dita "famia". Sempre era falado que a situação não era boa, sabe-se lá o que isso vem a ser. Um bom tempo depois, a "famia" da Bastiana certamente arrumou-a-situação-dela, pois ela mesmo disse que "graças a mi'a famia, vô vê mi'a main". O dia seguinte começou com um labacé só! Foi uma correria, uma gritaria, um arruma e corre… até que a paz e o silêncio voltou a reinar dentro de mim. Passamos dias a fio, só eu, Seu Jaum, o macho velho e os bichos do quintal. 

Depois de quase um mês na casa da mãe, a senhora Silva com seus pedaços menores, voltaram para mim, para o véi ou mô, como ela chamava, e para a vida na fazenda. O macho velho logo quis saber:

(Jaum) I-comu-foi-lá, muié? 

(Bastiana) Ah, foi baum... ah si foi! Tudu-taum-diferenti! 

(Jaum) I-comu-tá-a-pesti-du-seu-pai, queli-véi-da-brobônica? 

(Bastiana) Ara, num-falassim-di-pain! 

(Jaum) Ara que diz sô ieu, sua famia é-toda-cheia-di-revestréis! Qui-curpa-tein-eu?! I-a-retardada-da-sua irmã?! 

(Bastiana) Retardada-é-sua-vó! Maninha teim um fiaum... taum lindaum! 

(Jaum) Du-vi-de-ó-dó! Si-puxô-a-main... he-he... devi-sê-uma-briga-di-foice! 

(Bastiana) Ocê-respeita-maninha! U-mininu-é-bunitu-qui-só! Teligenti-di-mais!  

(Jaum) Teligenti... quá?! Qui aprendi duzôtuinsiná? Issu-num-é-teligênça!  

(Bastiana) Intaum-u-qui-é? 

(Jaum) Teligenti memé-um-canecu, que sem ninguéinsiná, fica-di-boca-prá-baixu, i num intorna!

O desajeitado macho velho, ora chamado de pai, de mô, de véio, de fio e, principalmente, de Jaum, era um humano atabalhoado. Desde que me construiu e se enfiou dentro de mim, vive metido no fundo da velha rede e de lá só sai para ir "trabaiá", apesar de eu não saber o que isso é. Sei que toda vez que sai para fazer isso, ele desaparece pelo caminho que beira o ribeirão, bem de manhãzinha, e só volta quando o céu começa a pintar. Mesmo, às vezes, voltando reclamudo, ele não perde a chance de zuar aos outros. O tempo é só o de se enfiar no ribeirão, depois na rede e não demora muito para sair com uma de suas tiradas.   


O saco de tabaco

Se tem uma coisa que é linda de se ver, é o cuidado que a fêmea mãe, a humana desengonçada, tem com todos. A fêmea Bastiana era do tipo mãezona preocupada. Bastava o vento esfriar um pouquinho, que ela já sacava do fundo do baú, um velho casaco, cheirando a mofo. Quando o assunto era a saúde da "famia", sempre tinha um chazinho… se precisasse de um conselho, ela estava sempre pronta a dar… e coisa que não faltava, era uma reza para espinhela caída, mesmo "a sogra", a fêmea mais velha, a Donana, fazendo pouco dela e dizendo que as rezas dela não servia nem para-cair-bicho-de-pé. 

A fêmea Tonha era metida-à-besta, não ligava muito para a fêmea menor, porquê, segundo ela, era-muleca-demais e ela já era uma-quase-mulher, afinal de contas, já fazia um tempinho que era-moça-formada, por isso não queria mais os bilangos, muito menos as brincadeiras com a pobre fêmea Josefa. Por isso, o banho dela, a preguiçosa Zefinha... era sempre motivo de preocupação da fêmea mãe, a Bastiana. Todo dia era a mesma coisa… todo dia ela aprontava o mesmo griteiro.

(Bastiana) Zefinha, vê-si-toma-baindireitu! Lava bein essazureia, minina! Podi gastágua a zói qui naum vai secá u corgu, muleca! Vê-si-mi-lava esse tabacu direitu, hein?!!!

Seu Jaum, o velho macho que não perdia um só momento de descanso no fundo da rede e uma oportunidade sequer de zoar com a vida, resmunga:

(Jaum)  Tabacu... ah-u-sacu-di-tabacu!!!

(Bastiana) U-qui-foi-omi?

(Jaum) Ess-noiti, sonhei cum sacu di tabacu!

(Bastiana) I-u-meu-tava-nu-mei?

(Jaum) Naum, u seu era o sacu!

(Bastiana) Seu zói, cafumangu! 

(Jaum) Ara muié… a-invés-di-ficá-recramanu, divia ficá filiz… seu tabacu era-u-maió-di-todus! Era u sacu dus tabacus!

(Bastiana) Sambanga! 

(Jaum) Maizié-u-sambanga-qui-ocê gosta… muié!

(Bastiana) Jaum… mim diga uma coisa…

(Jaum) Inté-dusa! 

(Bastiana) Nu sacu di tabacu du teu sonhu, num tinha uma tira qui amarrava a boca-du-sacu?

(Jaum) Acá… pensanu bein… tinha si… ahhhh si tinha!

(Bastiana) Antaum… apostu qui-era-ess-sua-rola-murcha!

Cheios de graça, os Silva não se acabrunhavam com as situações da vida que passavam. Mesmo a vida não lhes sendo muito favorável, a pobreza ser rede do descanso tardio e a dificuldade a fiel irmã da suas esperanças, os Silva estavam sempre a arrumar um bom motivo para zoar a tudo e fazer a vida banguela sorrir!

Desfecho 

Cá-pra-mim, eu queria mesmo é que os Silva tivessem a mesma disposição para me dar um pouco mais de atenção. Tirando a desmilinguida da fêmea Donana e desengonçada da Bastiana, ninguém dos outros Silva se importam muito comigo. As duas aí ainda me limpam, passam barro no meu chão, elas até põem flores nos cantos. Mas a metida da Tonha e preguiçosa da Zefinha, as outras duas fêmeas da famia-Silva, só servem mesmo para comer e panhar bunda o dia inteiro. 

O Tunico é outro, que só pelo gostador dos pregos que prende minhas madeiras! O pequeno sabináceo quando levanta um pé, cupim já comeu o outro… e olha que de cupim eu entendo! Bem isso!!! Segundo o macho velho, daqui uns dias vai-cumeçá-a-aprendê-a-inscrivinhá-cu'a-KF! O Tunico é uma peça rara. Agora que tá grandinho, a noite se afunda na durmideira e se põe a se apalpar… por enquanto, disso… só eu sei, mas acredito que não demora, Tonha descobrirá!

Mazelas dos Silva à parte, eu queria mesmo é que o macho velho tirasse um tempinho para mim. Sei que ele vive para duas coisas: o roçado, que não sei bem o que é, também… não consigo ver de onde fica e a rede do quarto ou do alpendre. Mas bem que ele podia arrumar um jeitinho de consertar minha janela… aff… faz tanto tempo que já está toda despinguelada! 


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