PARA QUE SERVEM OS RETRATOS?

 - Faz mais de quarenta anos! Sim, faz mais de quarenta anos que eu vão, eu espero por você!

Abaixo a cabeça… pego, na mesinha que está do lado da cadeira sobre a qual estou sentado, uma pequena caixa de fósforo, apanho a carteira de cigarro… retiro um: passo sob o nariz… um pensamento personificado me passa pela inquieta mente: “quanto tempo você não faz isso Cao"! Acendo e dou o primeiro trago:

- É isso mesmo, Deus! Você está atrasado uns 40 anos ou mais… Mesmo sabendo que você não está nem aí para o meu penar, quero te contar que no turbilhão de pensamentos que giram em minha inquieta mente, um… um único tem me atormentado sobremaneira.

- Para que servem os retratos? Ah! Maldito pensamento! Ele não se vai… mesmo que eu o acolha, mesmo que eu o deixe ir… ele dá meia volta e volta… a mente: metida mente! Escolher: não é uma opção, está além de mim, além das minhas forças! Eu até luto contra, me policio, sabe… mas de repente… vapti: estou eu lá pensando de novo, falando de novo… 

- Vem cá Deus, por quê? Por que você me deu uma inquieta mente?

- Não sei se você notou, mas depois de anos, consegui finalmente aprender as regras que regulamentam os porquês… sim: por que separado e sem acento é para interrogar no início da frase; por quê separado e com acento é para interrogar no final; já porquê, assim, junto e com acento é usado como substantivo, tem sentido de motivo, causa, circunstância e porque junto e sem acento… hum, para que mesmo serve? Ah, quem liga… 

- E aí Deus, podia ter me dado uma detida mente, né?!

- “Ah, mais bem que você podia sair mais, né Cao… um barzinho transado, uma viagem: que tal?” Será que passou pela sua cabeça que socializar é difícil para mim? Por que mesmo Deus, você meu deu embotamento social, heim? Para que serve isso? Só para me fazer sofrer, sádico você! 

- Ah… os retratos! Para que servem os retratos? Servem para te levar para um tempo que não está mais lá!

Trago pela segunda vez… 

- Díficil isso, né Deus… sempre um dizendo que eu isso, outro dizendo que eu aquilo... vem cá Deus: todos podiam funcionar exatamente igual né?! Afinal de contas, se todos se sentem no direito de vir me dizer como devo agir… 

- Ah! Sim, porque junto e sem acento é para explicar e tem valor de pois!

- Como cansa ter que relacionar… aliás, se tu criastes o ser humano e a consciência que cria o sentimento, a partir da relação, ou seja, Deus… a consciência desperta o sentimento e ele, por sua vez, faz surgir as relações, e ambos fazem surgir a individualização da consciência, a consciência eu. Então, Deus, o homem, a partir da relação com o outro se individualiza… na relação, o outro faz surgir o eu… viu que é tudo relacional, Deus... então, por que não são todos iguais? Por que prefiro não me relacionar?

- Viu que usei o "por que" correto?!

- Já faz uns quarenta anos que você está atrasado… ou mais! 

Cafungo duro! 

- Sabe Deus, eu estou exausto… minha bateria esgotou! 

- Ah, Deus… coisa estranha isso de querer imobilizar o tempo num retrato… só para voltar lá depois: isso não te soa estranho? Para mim não faz sentido algum! 

- Meus dias têm estado tão cinza… da cor desta fumaça!

- Sabe Deus, há dentro de mim, um profundo diálogo contraditório entre meus pensamentos e emoções!

- Não é que eu queira me conduzir pelo pensamento ou o modo de funcionar dos outros… não é isso, Deus! É que passei tanto tempo, tanto... sabe Deus, tentando me encaixar… copiando o modelo de funcionar dos outros, que aprendi e encobri meu modo caótico de funcionar... acho que isso tem a ver com suas casas... todas aquelas que frequentei... precisava me encaixar!

- Para que tantas caixas... hein, Deus... para quê?

- Atente-se para o fato de todo "que" no final de frase interrogativa, ser acentuado!

Bato o dedo indicador no cigarro, fazendo a cinza acumulada cair… dou outro trago! 

- Tenho meu modo de funcionar Deus… meus pontos de interesse. Ah! E não adianta querer me tirar deles não, viu Deus!

- É claro que eu queria ser normal… Lembro vovó a aconselhar meu pai: "leva esse menino no médico de cabeça… ele não é certo!” Eu devia ter uns 12 ou 13 anos. Vovó acreditava que "certos" meninos deviam ser tratados para não dar "problema" depois dos 15… He-he-he-he… não sei o que isso quer dizer! 

- Hei Deus, eu sei que você não está aqui, mas que serzinho estranho esse que você criou, hein?!

- Empatia o escambau! Quero ver você aqui tentando se localizar em minha inquieta mente… ah! Essa eu pagaria para ver! Do alto de sua prepotente mente... essa eu queria ver! 

- Lembro de mamãe, às vezes, chegar e me cutucar… ah! odeio cutucões! Quer me ver puto, prostituto da cara, me cutuque… é que sou meio avesso ao toque. 

- Sabe que quando eu fazia faculdade, eu morava no Tijucal e eu ia de busão para a UF. No final da aula, quando eu não tinha aula de inglês ou de espanhol, eu tomava busão no sentido centro, passava pela UF de novo e seguia para casa. O motivo disso: para não tomar busão lotado e as pessoas ficarem esbarrando em mim… 

- Então, né… para quê fazer retratos, se quando você voltar nele, o tempo não estará lá? Nem as pessoas estarão lá! Nem você! 

- É Deus, o pior de tudo é quando eu estou de boa, as pessoas, seus "filhos", vêm me perguntar se eu estou triste ou com raiva delas… Ah! Dona Maria… meu Pai: haja saco para aguentar… nunca consegui entender… talvez o problema seja meu né?! 

- Será que não sei expressar tristeza e nem raiva? Estranho, isso… não é mesmo Deus? Se tu fizestes tudo perfeito, por que eu não sei expressar tristeza ou raiva? Não devia ser tudo igual? Todos deviam saber, concorda?

- Você viu que eu usei o "por que" corretamente?

- Mamãe me cutucava e me dizia: "Cao, Cao: a terra de chama! Sai do mundo da lua, menino!"

- Sabe que nesses desligamentos, eu me perdia desse mundo que eu não reconheço, que não me sinto parte dele! É… esse mundo da lua, que mamãe dizia que eu ia, era um refúgio… lá eu me sentia protegido. Uma pena que a gente cresce né… a vida de gente grande me tirou o que, de mais precioso, eu tinha!

- Não fazem sentido, os retratos: são quinquilharias que eu prefiro não ter!

Apago o que resta do cigarro na minha própria mão e murmuro: 

- E criou o homem, o seu Deus e com ele, a sua eterna prisão... é por isso que eu sou assim: inquieta mente!


Uma crônica de Cao Benassi
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